Os trabalhadores que viajaram da China para o nordeste do Brasil para construir uma nova fábrica da montadora de carros elétricos BYD (002594.SZ) ganhavam cerca de US$ 70 por turno de 10 horas – mais do que o dobro do salário mínimo por hora em muitas regiões chinesas. Para muitos, aceitar o emprego foi uma decisão fácil, mas sair dele se tornou um grande desafio.
Os trabalhadores chineses contratados pela Jinjiang no Brasil tiveram que entregar seus passaportes à empresa, permitir que a maior parte de seus salários fosse enviada diretamente para a China e pagar um depósito de quase US$ 900, reembolsável apenas após seis meses de trabalho, segundo um contrato de trabalho analisado pela Reuters.
O documento de três páginas, assinado por um dos 163 trabalhadores que, segundo fiscais trabalhistas, foram libertados de condições análogas à escravidão no mês passado, contém cláusulas que violam as leis trabalhistas tanto do Brasil quanto da China, de acordo com investigadores brasileiros e três especialistas chineses em direito do trabalho.
Cláusulas abusivas e condições precárias
O contrato também previa que a empresa poderia estender unilateralmente o vínculo empregatício por mais seis meses e aplicar multas de 200 yuans por infrações como xingar, discutir ou andar sem camisa no canteiro de obras ou nos alojamentos.
“Muitas dessas cláusulas são claros sinais de trabalho forçado,” disse Aaron Halegua, advogado e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, que já obteve indenizações para trabalhadores chineses em processos por trabalho forçado nas Ilhas Marianas do Norte, território dos EUA.
Halegua acrescentou que reter passaportes ou exigir depósitos de garantia trabalhista são práticas proibidas pelas leis chinesas.
BYD e Jinjiang negam acusações
A Jinjiang, que constrói fábricas da BYD em diversas cidades chinesas, como Changzhou, Yangzhou e Hefei, refutou as alegações, afirmando que os achados dos fiscais brasileiros são inconsistentes e resultado de erros de tradução.
“A alegação de que os funcionários da Jinjiang foram ‘escravizados’ e ‘resgatados’ é completamente infundada,” disse a empresa em um comunicado no mês passado.
Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD Brasil, afirmou à Reuters que a montadora não tinha conhecimento das violações até que surgiram as primeiras reportagens na mídia brasileira no final de novembro. Foi então que a BYD entrou em contato com a Jinjiang para esclarecer as acusações.
Baldy e Tyler Li, presidente da BYD Brasil, reuniram-se em 2 de dezembro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Durante a conversa, eles afirmaram que a BYD estava lidando com o problema, segundo duas fontes com conhecimento do encontro.
O gabinete de Lula não respondeu imediatamente a um pedido de comentário.
Inspeção revela alojamentos insalubres
Duas semanas depois da reunião, uma inspeção trabalhista encontrou trabalhadores vivendo em condições degradantes: 31 pessoas alojadas em uma única casa com apenas um banheiro, sem colchões, e com alimentos empilhados no chão ao lado de pertences pessoais.
Baldy negou ter discutido o caso com Lula e afirmou que a BYD desconhecia os termos do contrato da Jinjiang. Ele garantiu que a empresa está tomando medidas para garantir “que essa situação nunca mais aconteça.” Após a inspeção, a BYD rompeu o contrato com a Jinjiang.
Os fiscais não apresentaram provas de que a BYD sabia das violações, mas a montadora “é diretamente responsável”, afirmou Matheus Viana, chefe interino da Divisão de Inspeção para a Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil. Segundo ele, a empresa deve responder pela conduta de sua contratada dentro de seu próprio canteiro de obras.
A fábrica que substitui a Ford
O contrato trabalhista expõe novos detalhes sobre como uma planta que deveria simbolizar a aproximação entre Brasil e China se tornou um escândalo para a BYD em seu maior mercado fora da Ásia.
Em 2023, a BYD anunciou um investimento pesado na produção de veículos elétricos em Camaçari, na Bahia, no mesmo local onde a Ford operou por duas décadas antes de encerrar suas atividades no Brasil, em 2021. A saída da montadora americana deixou cerca de 5.000 trabalhadores desempregados.
Para Lula, ex-líder sindical dos metalúrgicos, o acordo com a BYD representava a promessa de trazer empregos industriais de alto nível a um reduto de seu partido. A expectativa era de que a fabricante chinesa gerasse o dobro de postos de trabalho em comparação com a Ford, em um estado onde quase 10% da população está desempregada.
No entanto, a contratação da Jinjiang para construir a fábrica acendeu um alerta. “Quando trouxeram essa empresa chinesa, ficou claro que não estavam jogando limpo,” disse Antonio Ubirajara Santos Souza, coordenador do sindicato local da construção civil (Sindticcc).
Em resposta à Reuters, a BYD afirmou estar comprometida com a geração de empregos locais e prometeu que, quando o complexo industrial estiver totalmente operacional, contará com 20.000 trabalhadores, incluindo brasileiros.
Durante a inspeção de dezembro, os fiscais encontraram cópias de dez contratos com cláusulas semelhantes às vistas pela Reuters. Alguns trabalhadores disseram que nunca receberam um contrato, enquanto outros afirmaram que só assinaram o documento após meses no Brasil.
BYD e Jinjiang serão acusadas de obstrução à investigação, pois não forneceram às autoridades o endereço dos alojamentos dos trabalhadores quando solicitado, segundo Daniel Santana, um dos inspetores que investiga o caso. Isso pode resultar em multas para ambas as empresas.
Preocupações locais e protestos
Atualmente, centenas de trabalhadores chineses ainda estão na obra, trabalhando ao lado de brasileiros, disseram líderes sindicais à Reuters.
O Sindticcc, sindicato da construção civil, afirma que os operários brasileiros reclamaram recentemente de falta de água potável no canteiro de obras. A entidade anunciou que pretende processar a BYD e a Jinjiang pelas violações trabalhistas.
Políticos locais também demonstraram preocupação com outros projetos chineses na Bahia, como a construção de uma ponte em Salvador, orçada em 7,6 bilhões de reais (US$ 1,28 bilhão). Moradores temem que essas obras também dependam excessivamente de mão de obra importada.
“Não podemos trazer desenvolvimento ao nosso estado às custas de trabalho escravo,” afirmou o deputado estadual Alan Sanches.
O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, disse à Reuters que a BYD ainda deve gerar 10.000 empregos locais e que o estado “não pode perder essa oportunidade.” No entanto, enfatizou que a montadora precisa garantir condições dignas de trabalho.
Já o presidente do sindicato dos metalúrgicos de Camaçari, Julio Bonfim, alertou que não aceitará que brasileiros sejam preteridos em favor de trabalhadores chineses.
“Se isso acontecer, a fábrica enfrentará sua primeira greve antes mesmo de iniciar a produção,” declarou.