Justiça barra aluna cotista em Medicina por não considerá-la parda: “Minha cor sempre foi minha certeza”

Mesmo após ser aprovada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF) como cotista, a baiana Samille Ornelas, de 31 anos, teve sua matrícula cancelada por não ser reconhecida como parda pelo comitê de heteroidentificação da instituição. A decisão foi baseada em um vídeo de poucos segundos, sem contato presencial, e ignorou toda a trajetória da candidata, que já havia cursado Biomedicina em sistema de cotas.

A universitária teve a vaga deferida inicialmente por liminar, ingressou na UFF em janeiro de 2025, e já estava perto de concluir o primeiro período quando a decisão foi cassada. Em choque, ela descobriu a exclusão ao tentar acessar o sistema da faculdade: todos os dados acadêmicos haviam desaparecido. “Minha cor sempre foi a única certeza que tive. De repente, apagaram minha existência”, afirmou.

De acordo com a universidade, Samille foi avaliada por duas comissões independentes compostas por pessoas com formação em letramento racial. As bancas concluíram que ela não possuía os traços fenotípicos exigidos para a modalidade. A Justiça confirmou o parecer, mesmo diante de um laudo antropológico que atestava traços compatíveis com a população negra brasileira.

A estudante relata que cresceu enfrentando o racismo e sempre se reconheceu como parda. A negação de sua identidade racial a abalou profundamente. “Passei a andar de cabeça baixa, com vergonha. É como se estivessem dizendo que sou uma fraude”, desabafa.

Além de sua formação anterior em Biomedicina, também pelo sistema de cotas, Samille apresentou fotos, documentos e vídeos complementares ao recurso interno da UFF — todos rejeitados. A instituição defende que seguiu rigorosamente as normas e afirma estar cumprindo decisões judiciais.

Apesar do trauma, Samille diz que não perdeu a esperança. Voltou a estudar para o Enem enquanto aguarda o desenrolar do processo nas instâncias superiores.

“Minha avó me chamou de médica antes de partir. Isso não é só um sonho: é meu propósito de vida.”

Sistema de heteroidentificação ainda gera controvérsias

O caso reacende a discussão sobre os critérios adotados por universidades públicas para validar o acesso às cotas raciais. Embora a legalidade dos comitês de heteroidentificação tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a subjetividade das decisões continua sendo questionada, sobretudo quando não há avaliação presencial. No caso da UFF, a análise é feita por vídeo, mesmo que diretrizes nacionais recomendem o contato direto.

De forma geral, os comitês se baseiam apenas na aparência física, desconsiderando histórico de discriminação ou ancestralidade. Segundo o edital da universidade, o vídeo deve mostrar o rosto e o perfil do candidato, que precisa declarar a própria identidade racial em voz alta. Samille afirma que esse procedimento, no seu caso, foi insuficiente. “Fizeram um julgamento raso, sem nem me olhar nos olhos.”