Uma investigação do g1 mostrou que sites de apostas licenciados pela Paraíba e pelo Rio de Janeiro estão operando além de seus limites territoriais, o que contraria a lei federal que rege o setor. A reportagem conseguiu registrar contas, depositar valores e fazer apostas de São Paulo em plataformas que deveriam funcionar apenas dentro dos estados de origem.
De acordo com a Lei nº 14.790, sancionada em 2023, os governos estaduais podem autorizar serviços de loterias e apostas de quota fixa, mas somente dentro de seus próprios territórios. O artigo 35-A da norma é explícito ao determinar que “os Estados e o Distrito Federal são autorizados a explorar, no âmbito de seus territórios, apenas as modalidades lotéricas previstas na legislação federal”.
Teste comprovou falhas na geolocalização
O g1 testou 52 plataformas apontadas como regulares por governos estaduais e conseguiu realizar apostas em seis delas — quatro da Paraíba e duas do Rio de Janeiro. O teste envolveu pequenos depósitos, entre R$ 10 e R$ 20, realizados de São Paulo, e apostas em campeonatos de futebol nacionais e internacionais.
Segundo especialistas, a falha é grave. O pesquisador Luiz César Loques, da FGV Direito Rio, afirma que permitir apostas fora do território licenciado fere o pacto federativo e gera “concorrência desleal” entre os estados. Já a professora Telma Rocha Lisowski, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, lembra que cabe aos governos estaduais fiscalizar o cumprimento da lei e aplicar sanções às empresas que desrespeitam as regras.
Resposta das autoridades estaduais e federais
A Secretaria de Prêmios e Apostas (SAP) do Ministério da Fazenda informou que a fiscalização é responsabilidade de cada ente federado. Entretanto, o órgão pode acionar a Advocacia-Geral da União em casos de descumprimento reiterado.
Na Paraíba, a Loteria Estadual (Lotep) afirmou que mantém uma rotina de acompanhamento e que abre procedimentos para apurar eventuais irregularidades. Segundo o superintendente Francisco Petrônio de Oliveira Rolim, operadores podem ser advertidos, multados ou ter as licenças cassadas. A Lotep declarou ainda ter arrecadado R$ 1,7 milhão em 2025 com as bets, valor destinado a projetos sociais e esportivos.
O governo do Rio de Janeiro, responsável por dois dos sites identificados, não respondeu aos questionamentos da reportagem até a publicação.
Situação nos outros estados
Além de Rio e Paraíba, outros estados operam apostas próprias, como Paraná, Sergipe e Tocantins. Todos afirmam possuir mecanismos de geolocalização que impedem apostas fora do território. No caso do Paraná, por exemplo, a Lottopar afirmou que o acesso é permitido apenas para saques realizados por apostadores já cadastrados no estado.
Sergipe também declarou que adota protocolos rígidos, incluindo bloqueio de VPNs, autenticação em múltiplos fatores e sistemas de verificação por IP. A agência reguladora estadual informou que qualquer violação territorial resulta em investigação administrativa e, se comprovada, em sanções como multas, suspensão ou revogação de autorização.
Crescimento desordenado e disputas legais
Hoje, cinco estados têm bets ativas, enquanto outros 17 aprovaram leis que permitem a criação de plataformas próprias. Há ainda um movimento crescente de municípios tentando criar loterias locais — mais de 70 já aprovaram leis nesse sentido. O caso mais notório é o de Bodó (RN), cuja bet municipal arrecadou R$ 8 milhões em dez meses, mas teve as operações suspensas por determinação federal.
Esse avanço desordenado preocupa juristas e especialistas em regulação. Conforme destaca Loques, a ausência de uma coordenação nacional pode provocar uma “guerra fiscal e territorial” entre as apostas regionais, com risco de perda de controle e aumento de irregularidades.
Desafio regulatório e futuro do mercado
A fragmentação das loterias estaduais mostra a dificuldade de se equilibrar autonomia federativa e segurança jurídica. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a competência dos estados para explorar loterias, o limite geográfico permanece obrigatório. Assim, cada estado precisa adotar sistemas tecnológicos que garantam o bloqueio a apostas externas.
No entanto, o caso da Paraíba e do Rio indica que ainda há falhas sérias. Por essa razão, especialistas defendem uma regulamentação complementar nacional, capaz de harmonizar critérios técnicos, fiscais e de transparência. A consolidação desse modelo, segundo eles, é essencial para que o mercado brasileiro de apostas online funcione dentro da lei e sem distorções competitivas.
